Mar, tu mesmo, aí deitado,
de olhar jovem-sempre,
entre o verde e o azul,
o que trazes em tuas águas
que não diviso com facilidade?
Conchas, ventos, sal, tronos de pedra,
o que tens de superficial e profundo,
exibes para um céu azul e imenso!
Esta atração pelos teus sons,
quiçá venha de uma idéia submersa
que observa os homens desde tempos arcaicos.
Eis que começa o espetáculo e tu tentas chamar a atenção..
Numa atmosfera de sonho,
chega Martim Afonso, herói para os índios e inocentes de hoje.
Em sua alma, se avizinham um trilhão de esperas e desesperos.
Ser ou não ser, desvendar ou não desvendar, declarar ou não declarar, tomar posse ou despossuir?
Mas é Martim que adentra ou o ator que o procura por dentro?
Te mostras, Mar, alheio a tudo isso, pois, sabes da verdade crua dos homens e seus dons de generosidade e assassinato, pleno dos rendilhados entretecidos em Bem e Mal.
A platéia delira porquanto é-lhe ofertado um feixe com a alma de todos os atores e não-atores, ofuscante espelho de si.
Mas só tu ó Mar ruges a História a um só tempo, indiferente aos rugidos tecnológicos em torno.
Tragédias e comédias, mitos e seres, embalam tua roupa verde-azul, com acessórios de algas e conchas submersas.
Tuas rochas trazem ainda as pegadas da primeira mulher com suas curvas em flor...
As areias, que com tuas ondas estapeias, pedem silêncio inutilmente, porém, porque o espetáculo tem que falar os fatos consumados e as profecias maias, os pecados mortais e as dúvidas humanas, para gáudio dos homens sem poder e do Poder dos Sub-Homens que satirizam tuas necessidades salinas..
Martim encontra em teu palco de areia a vontade do amor e o amor da vontade, o tédio dos homens e a saudade.
A beleza feminina de tuas areias, que exalam a quentura das origens, lembram o que ele deixou no lusitano além-mar.
Um dia, Camões delirou pela amada Dinameme, a chinesa roubada por Netuno em sua gula de felicidade alheia e beleza:
"Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste."
Bartira e Ramalho lembram a Martim sua linda Ana Pimentel, pimenta e mel, flor e brisa...
O ator encontra um banquete dionisíaco a seu dispor.
Há pão e circo o bastante também para ele e espectadores.
Martim divide com Ramalho, Bacharel, Ana, Catarina, D. João III, Pero Lopes, Sacerdotisa, Artistas, marinheiros, povo, e outros e outros, os olhares bestificados pelo milagre de dar vida aos grãos de areia.
Pelos teus palcos, ó mar, vejo navegar também o Tempo, com suas naus de farelos perenes, fiando poesia em suas calmarias e tempestades.
Quantos castelos de areia um ator e sua platéia são capazes de fazer, enquanto o Tempo vem com sua pazinha destruí-los sem dó nem piedade?...
Mas e eu? Quantas vezes fui enterrado na areia molhada e dela ressuscitei!
Verdade que perdi o dom da ressurreição, ou melhor, ganhei a vergonha de me enterrar até o pescoço.
Todas as cenas decorrem como num sonho, altar onde Martim Afonso se confessa, declarando ao final as ordenações manuelinas.
E eu confesso que sei que o fingimento é a verdade mais legítima, com a fúria das suas artes mais sutis.
Confesso que sei que toda festa termina no auge da felicidade máxima para tristeza da platéia e de seus atores e atrizes.
Mas tu, ó mar sempre mar-"teen", ainda balanças tuas vestes espumantes e estremeces em nossa memória os paralelos mais distantes.
...A primeira mulher curva o primeiro homem, enrodilhada em algas cênicas pela enésima vez..
Comentários