VERSÃO sexta-feira, 3 de março de 2017
...ARAKA’AEVE NUNCA MAIS, inspirado em poema de Edgard Allan Poe - The Raven (O CORVO) e em
Eros e Psiquê, de Fernando Pessoa
...Meia-noite? Não sei bem, era horário de verão.
Folheava um livro raro, letra barroca e fininha.
Meu corpo todo doído debruçava sobre a mesa.
“Ouvi o som do interfone?” Estiquei-me. Dor na espinha.
“Quem toca meu interfone?” Logo atiça a dor na espinha.
Quem vem com seu nhenhenhém?”.
Foi no início de setembro. Meu aniversário, eu lembro.
Não paguei a luz. Velavam velas várias na cozinha.
Esperava o sol, o dia. E a noite me tragava,
A leitura me enjoava, só lembrava de Amelinha
Ancorado no cais longo da memória...Amelinha !!!
“Quem vem com o seu nhenhenhém?”
A cortina na vidraça balançava, para horror
Desta herdada arritmia que ao peito desavinha.
Ouvi de novo o interfone por vagarosos segundos...
“É cliente atrasada??? A fofura da vizinha?
Como puxa meus lençóis! Ela é uma vizinha
Bem versada em nhenhenhem”.
Fui atender, animado, falei ainda de dentro:
“ Queridinh...digo: Cida, não repare a casa minha”.
Eu tava morto de sono, e o interfone não se ouvia.
E cê não sabe, doído fiquei a tarde todinha.”
E então eu abro a porta : eis a rua em breu, todinha !
Ninguém para nhenhenhém.
E tremeu-me o coração num compasso acelerado :
“ Mas que breu tão pavoroso, de um vazio que encaminha
Espantos de dar artrose em caracóis de manilha.”
Gritei no instante, inflamado, o nome de Menininha.
A minha voz ficou fria. Não me ouve Menininha?
Nhenhenhém. Sem nhenhenhém.
Logo ao reentrar em casa, de alma em peso, a vidraça...
Ouço um som bem forte, cacos: caem as minhas glicínias.
“Terei de verificar se não é algum ladrão. Ou será assombração?
Resolver tudo num tiro é meta que me encaminha.
- Ufa ufa, foi o vento sobre o vidro. M(eu), calminha.
Da Natura o nhenhenhém.”
Abro a vidraça e bem presto uma ave entra, esvoaça.
Suas asas quebram tudo. Voam poeira e peninhas.
“Essa ave tem tamanho... Não creio. Rasga-Mortalha ?!”
Pousa de frente a meu quarto; as asas abre, se aninha.
Se empoleira sobre a porta bem retinha, e se aninha.
- “Araka’eve nhenhenhem.”
Ela fala em Guarani? Por que me diz Nunca Mais?
“Eu acho que cê precisa ser mais suave, Rasguinha.
E ter mais educação quando for entrar nos lares.
Me atrevo a uma pergunta, ó ave de ignomínia:
Que nome lhe dá o Inferno? (No folclore, é Suindarinha).”
- “Araka’eve nhenhenhem.”
Senti o bafo mortal, ouvindo a frase de perto,
Matutei no repetido nhenhem de sua falinha.
Escolheu a minha porta, apoiou nela o garrão...
E se eu disser ao mundo, dirão que amo a bebida
De Baco e sou seu servente, dirão que sou da bebida...
- “Araka’eve nhenhenhém.”
Repetia sua frase, esperei uma outra fala,
Só falava em guarani. Sorte ter avó indígena.
Depois ficou lá, calada, tal qual estátua de penas.
Disse a ela, em meu pensar: “sei que dessa porta minha
Partirá, quais os amigos, fugidos da porta minha.”
– “ Araka’eve nhenhenhém."
Por que só diz uma frase? Foi pai dela que ensinou ?
Deve tê-la educado em agouro e simpatias.
Suindara teve um pai que era grande feiticeiro.
Contou-me meu mar-avó à beira de rio-avô,
Contou-me e eu dormia à beira do rio-avô...
– “ Araka’eve nhenhenhém."
Encostei - me na poltrona de courinho quebradiço,
E pensei sobre a razão do agouro da mesquinha,
Que findou tantos guerreiros em pavores renascidos.
Não me rasgou a coruja, famosa por talhadinhas,
Mas me agourou som cortante, n’alma rasa talhadinha:
– “ Araka’eve nhenhenhém."
Que era de Suindara quando vivia entre nós?
Amava o filho de um Conde, mas não amava sozinha.
Incestuosa, intratável, a esposa má do Conde
Mandou matar Suindara, de um bruxo bela filha.
Eliel, famoso bruxo, seu só tesouro – esta filha.
– “ Araka’eve nhenhenhém."
Com estátua de coruja enfeitaram o seu jazigo,
Pois além de carpideira, era do povo a “mestrinha”.
Eliel fez um feitiço, quando soube da tragédia.
À filha tornou coruja, deu-lhe a força das Eríneas,
E deu fim na atroz Condessa com a fúria das Eríneas...
– “ Araka’eve nhenhenhém."
Depois disso, quanta morte anunciou ela ao mundão.
"Terá cansada de voar e agourar pelas vias?
Qual a razão de aqui vir com seu olhar inflamado?
Será só pra me lembrar do que fiz com Menininha?
Ó que saudades dos olhos teus nos meus, Menininha...
– “ Araka’eve nhenhenhém."
Senti em dantesca treva do destino ossudo abraço.
A casa foi encolhendo, qual acanhada rolinha,
Então, bradei: “Vem, Mortalha, me joga logo no inferno !!!
Não esqueço a morte em mim da suave Menininha.
Quando é que esquecerei da morte de Menininha ?”
– “ Araka’eve nhenhenhém."
“Ó bela e sábia Suindara, haverá um lenitivo
Que possa me ajudar? Responde, santa adivinha !
Tira estas manchas de sangue, hein, meiga corujinha ?
Pode mudar-me, a que eu seja um outro, de companhia?
Serei menos rejeitado sendo atenta companhia.”
– “ Araka’eve nhenhenhém."
“Cogito desenterrá-la co’ estas mãos impenitentes,
Chamar minhalma e amá-la como Poe amou Virgínia,
Eterna lua de mel melar no melaço-vida,
E depois mais integrar nossa alma coletiva.
Quanta vez nós já cruzamos na inconsciência coletiva?
– “ Araka’eve nhenhenhém."
“Parta, agora, diaba/ruja, deixa em paz esta morada;
Tava aqui bem sossegado, bem longe de suas garras,
Que prendem a minha alma, fio de arremedo que encorpo.
Finca de uma vez as garras, me corte da vida a linha!
Ou saia já, bestial,
pra outros em fins de linha !”
– “ Araka’eve nhenhenhém."
A ave fechou os olhos. Suas garras me nublaram.
E o meu ser que é só tumulto foi pra imagens não-sanguíneas.
...Eis outra vez o interfone num insistente tocar.
Quase morro, ela no espelho, onde dorme, em maresia.
Ergue a mão e encontra hera, a cabeça em maresia.
– “ Araka’eve nhenhenhém."
Domingo, um dia de algum abril É tarde e estou dentro de mim e de um ônibus, falo alto por fora num silêncio por dentro, bem atrás, de onde o cheiro reverbera, rodeada de uma porção de moscas humanas, de uma porção de coisas, uma mendiga entre sacos de plástico sorri sem nariz. . Uma outra mendiga finge ser madame, com um poodle de papel francês: caniche, com latido em bolhas, do imaginário desfiado em sacos plásticos de mercado. No lado esquerdo do ônibus, um ruela zé cospe nela seu cérebro podrelíquido. . Quando desço, desce a consciência comigo, caminha comigo desde há muito, a me ensinar que o excesso de perfume pode esconder uma alma empoçada. e vice-versa, ou quase.
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